Como um cara que não bebe uísque ganhou o dia numa destilaria japonesa

Esta talvez não seja a melhor forma de começar um texto sobre o assunto mas é melhor deixar tudo às claras: detesto uísque. Podem chamar meu paladar de infantil mas acho o destilado forte e incômodo na boca. Acontece, porém, que sou curioso e isso explica o que me levou até a cidade de Hokuto, nas montanhas da província de Yamanashi, para visitar a destilaria que produz um dos uísques mais premiados do mundo, o Hakushu da japonesa Suntory.
O Hakushu é um uísque single malt, de coloração levemente dourada, com teor alcóolico de 43%. O uísque é conhecido pelo aroma e pelo sabor que remetem ao frescor do verde das montanhas da região onde é fabricado. Ao paladar, o Hakushu traz notas cítricas de limão, yuzu (uma fruta do leste asiático), toranja e tomilho, com um leve defumado no final, fruto do processo de secagem do malte com fogo de turfa. Fragrâncias de hortelã-pimenta, melão e pepino também podem ser sentidas.
Para muita gente, é difícil compreender porque os japoneses estão dando uma banda nos escoceses e produzindo os melhores uísques do planeta. Vale aqui um pouquinho de história para refrescar a memória sobre a origem da bebida. A palavra ‘uísque’ provavelmente vem do gaélico ‘uisce’ que quer dizer ‘água’. Aparentemente, usar a inocente de bebida que nos dá a vida como sinônimo para goró é uma ironia que remonta ao tempo do onça. Na Escócia e na Irlanda — as terras do uísque —, a nobre arte de transformar água em elemento desafogador de mágoas através da destilação chegou no século 15.
Como sempre, o consolo dos céus chegou primeiro aos ’escolhidos’, no caso, os monges. Mas não levou muito tempo para que a receita caísse nas mãos profanas dos médicos da época. Obviamente, a intenção era a melhor possível: curar doenças. Só que o mundo já sabia que não existe dor para a qual o álcool seja mais recomendado que a de cotovelo. E não deve ter sido à toa que o primeiro registro escrito do uísque na Irlanda revele a morte de um figurão por excesso de bebida no Natal. Parece que o nascimento de Cristo é época de afogar as mágoas na marvada desde antigamente.

pintura a óleo, Erskine Nicol (1869)
Acontece que o uísque caiu nas graças do Rei Jaime IV da Escócia e o que era apenas um remedinho acabou se tornando o produto mais famoso do país que resolveu permanecer no Reino Unido e, agora, deve estar se afogando nos puros malte de arrependimento. Pelo visto, haja uísque para aplacar as dores dos escoceses já que a maré não anda mesmo muito boa pro lado deles. Durante séculos, o país dos kilts e das gaitas de fole ostentou o orgulho de produzir os melhores uísques do mundo. Só que eles não contavam com a astúcia dos japoneses.
Uma destilaria nas montanhas
Sendo bem honesto, mais uma vez, a destilaria do Hakushu foi construída no meio do nada. A estação ferroviária mais próxima — Kobuchizawa — fica a uns 6 km de distância. Não existem linhas de ônibus públicas que cubram o trajeto. Nos fins-de-semana e feriados, a destilaria oferece transporte gratuito partindo da estação ferroviária, em sete ou oito horários do dia. Táxis também estão disponíveis a um preço não muito convidativo. E é isso ou meter o pé na estrada. Mas vamos combinar que caminhar depois de umas e outras é tarefa meio complicada. Por isso, o ideal é ir de carro, de preferência com alguém que não beba já que álcool e direção, além de ser uma combinação extremamente perigosa, dá cana braba — perdão pelo trocadilho — por aqui. Desta vez, recrutei um companheiro de viagem que pudesse assumir o volante e, juntos, seguimos para Hokuto.
